quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

"Nossa Senhora do Nilo"reabre as feridas do massacre em Ruanda


"Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão-de-ar, da Isaura e das feridas penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo."

É dessa maneira que o escritor Ondijak começa seu texto e o filme "Nossa Senhora do Nilo", dirigido por Atiq Rahmi, apesar de africano como o conto de Ondijak, nada tem a ver com as feridas penduradas do Cão Tinhoso, mas tem a ver com as feridas abertas que o massacre em Ruanda entre os anos de 1990 e 1994 provocaram.

Numa escola religiosa católica pra meninas da elite de Ruanda, no alto de uma colina e totalmente isoladas do mundo, meninas sonham em ser esposas, mães, artistas de cinema e deusas. Elas não sabem o que acontece em seu país e questionam que Deus abençoa os negros.

É um Deus que devia ajudá-las, orientá-las e protegê-las, mas nessa escola, as forças dos homens mortais são mais forte e uma adolescente grávida é vergonha e desaprovação.

Também é proibido ter contato com bruxas, falar o idioma local e conversar em afazeres diários como a limpeza de uma biblioteca ou de uma santa.

Esse Deus tão presente em seu dia a dia parece tirar férias quando elas mais precisam de sua proteção e elas ficam abandonadas quando o lugar que elas vivem vira palco para lutas políticas e incitações para crimes raciais.

Pra quem não sabe, entre os anos de 1990 e 1994, uma Guerra Civil se instaurou em Ruanda motivada pela disputa étnica entre os hutus e tutsis e a escritora Scholastique Mukasonga, autora da obra de mesmo título do filme e que inspirou o diretor Atiq Rahmi, é uma das sobreviventes do massacre em Ruanda e, portanto, personagem dessa história contada por ela e muito bem retratada por Rahmi.
"Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas. Fechei o livro. Olhei as nuvens."e assim termina o conto sobre o Cão Tinhoso de Ondijak, mas na história de Mukasonga dispararam mesmo bué de tiros dentro da sala de aula, houve silêncio, mas eram pessoas que morriam por serem negras.

"Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes.", mas nós choramos com o destino de quem acompanhava Mukasonga e ficamos chocados por perceber que, diferente das feridas do Cão Tinhoso, as feridas de Ruanda são reais e ainda doem.

"Nossa Senhora do Nilo", estreia no próximo dia 5 de janeiro nos cinemas, tem 93 minutos e é distribuído pela Pandora Filmes.

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